Amamos odiar homens?
"Eu odeio homens", elas dizem a quem quiser ouvir, enquanto abraçam seu companheiro no fim do dia.
Talvez eu seja cancelada, assim como a bell hooks foi um tanto (numa época que nem existia cancelamento) pelas escritoras feministas da época em que escreveu “A vontade de mudar: homens, mascunilidades e o amor” (2004). Mas tenho pensado muito sobre o quanto nós mulheres conseguimos ser hipócritas, repetindo exatamente os mesmos comportamentos que odeiam e combatem politicamente e socialmente…nos próprios relacionamentos com homens.
Me explico, mas antes preciso dar um contexto sobre mim.
Fundei um coletivo feminista aos 15 anos, no Colégio Pedro II, um dos colégios federais mais esquerdistas que você poderia pensar. Fiz faculdade pública de Psicologia, mestrado em Psicologia Social também numa universidade pública. Digo isso porque não comecei a me entender feminista ontem, e me entendo como bissexual há muito tempo, tendo passado a maior parte da vida me relacionando com mulheres.
Acho importante me localizar antes de falar que SIM, nós, mulheres feministas que lutamos contra opressões e desigualdades de gênero, acabamos sendo indulgentes com a nossa própria violência, chamando de “reparação histórica” as negligências emocionais que oferecemos aos nossos namorados e maridos.
A maioria de nós já entendeu que grande parte dos homens heterossexuais são homoafetivos, ou seja, gostam apenas de outros homens e se interessam apenas pelo corpo feminino/sexo com uma mulher, mas não pelas mulheridades - aquela parte de nós, nossos gostos e interesses, nossos assuntos, que são menosprezados, sabe?
No entanto, é estranho pensar que, muitas vezes, fazemos a mesmíssima coisa.
Reclamamos dos homens que são inaptos emocionalmente para estarem em relacionamentos maduros e saudáveis (sendo capazes de oferecer não só o sentimento de amor, mas também a responsabilidade, a honestidade, o compromisso, o cuidado e a atenção que merecemos)…mas negligenciamos repetidamente as emoções dos nossos companheiros, as necessidades que eles colocam, já que a nossa também precisa ser colocada.
Sei bem que é difícil pra nós ouvirmos o quanto eles estão infelizes ou descontentes com os nossos comportamentos, porque, afinal de contas, somos socializadas para não errar em serviço…e a infelicidade deles se torna um sinal de que estamos falhando no nosso trabalho mais íntimo: de sermos boas esposas/namoradas/companheiras. Ao ouvir que algo está errado, nossa primeira reação às vezes é: “está querendo dizer que a culpa é minha? eu também estou sofrendo!”.
Frequentemente, reviramos os olhos e ridicularizamos de suas demandas, seus interesses, seus gostos, suas amizades…e acabamos disfarçando nosso desprezo pelas necessidades emocionais de homens que, intimamente, deveriam resolver suas emoções como um homem (resolutivo, pronto, com coragem de bater no peito e assumir qualquer desafio!) ao invés de fazer um drama desnecessário, como um menino.
Confundimos frequentemente nossa assertividade ao falar das nossas emoções e desejos, conquistada com custo financeiro e emocional nas nossas inúmeras sessões de terapia…com grosseria.
A verdade é que, inúmeras, incontáveis vezes, maltratamos e abandonamos emocionalmente nossos homens, por eles serem, acima e antes de tudo, homens.
Por que não falamos abertamente do quanto podemos também odiar dos nossos próprios companheiros, não só o “homem”, aquele lá de fora, sem nome, mas com gênero?
“Mulheres e crianças em todo o mundo querem que os homens morram para que elas possam viver. Essa é a verdade mais dolorosa da dominação masculina: que os homens exercem o poder patriarcal na vida cotidiana de formas profundamente ameaçadoras à vida; que mulheres e crianças se encolhem de medo e vivem em diversos estados de impotência, acreditando que a única saída para seu sofrimento, sua única esperança, é que os homens morram, que o pai patriarcal não volte para casa. Mulheres, meninas e meninos dominados por homens já desejaram que eles estivessem mortos porque acreditam que esses homens não estão dispostos a mudar. Acreditam que homens que não são dominadores não serão capazes de protegê-los. Acreditam que os homens são casos perdidos.” bell hooks, 2004.
Você que me lê até aqui, sinta-se à vontade para me tomar como uma “defensora de macho”, mas lembre que meu compromisso enquanto psicóloga é, antes de qualquer coisa, não contribuir ou corroborar com nenhuma forma de violência.
E, honestamente, estou can-sa-da de receber casais na clínica (tanto hetero quanto homossexuais!), onde a demanda do cara é “ei, espera um pouco, eu também tenho sentimentos!”, e a outra pessoa age como um rolo compressor, esmagando qualquer sinal de demonstração afetiva e emocional daquele homem que diz amar.
Me lembro aqui enquanto escrevo de uma situação onde eu falava sobre uma situação onde eu não sabia como lidar com uma situação que entristecia meu marido, e uma amiga querida, lésbica, feminista, me respondeu com “é amiga, é isso…homens, o que tenho a ver?”. Citando um meme, eu sei, mas não achei a menor graça na tristeza e no descaso com uma pessoa que eu amo tanto - e que calhou de ser um homem.
O oprimido sonha em se tornar o opressor, diz certeiramente Paulo Freire. Seria possível, gente, que o nosso “ódio aos homens”, não atravessasse as nossas relações?
Será que nós vemos, de alguma maneira, os nossos amigos, primos, tios, pais, namorados e maridos… como possíveis violentadores, como nossos inimigos?
Será que no nosso medo, na nossa defesa no codiano enquanto mulheres que somos…conseguimos acreditar que eles realmente tem o desejo de serem abertos e disponíveis para amar de verdade?
Acho difícil não misturar as coisas.
Acho difícil não desumanizar as _pessoas_ que são importantes pra gente com um mal-uso do discurso feminista, que nos autoriza, de alguma forma, a odiá-los, já que não conseguimos fazer com que eles nos ouçam, nos validem, nos demonstrem seu amor que tanto precisamos.
Espero muito que a gente lute contra as opressões dentro das nossas relações, sim, que nossos relacionamentos e afetos são sempre políticos! Nossas brigas e nossos problemas, também, principalmente porque há uma desigualdade de gênero estrutural que reside também nas nossas casas.
Mas espero também que a gente perceba que às vezes, só às vezes, o outro não conseguiu lavar a louça ou arrumar a casa não porque é homem-que-espera-que-você-faça…mas porque estava cansado de verdade e contou com a gente enquanto parceiras de vida pra poder descansar.
Sim, eu sei, nós mulheres somos ensinadas a engolir o cansaço e fazer as coisas da casa mesmo assim, juro que sei. Mas aqui entre nós, prefiro que a gente aprenda a respeitar nossos limites e a não se sacrificar pelo bem-estar da casa só porque fomos ensinadas assim do que nossos companheiros aprendam a se sacrificar também. Percebe a diferença?
Desejo muito também que a gente se lembre de que o amor é a única revolução verdadeira…e onde há prática de violência, já dizia bellzinha, é impossível existir amor.
É controverso e incômodo me ler, eu imagino. Mas me diga aqui nos comentários ou lá no meu post do instagram sobre a news (@acarolpadilha.psi) se te fiz refletir um tanto. Se demore no pensamento, se perceba, e me diga.
Com carinho,
Carol Padilha
Parabéns pela coragem de escrever esse texto que de fato corre o risco de ser cancelado, mas que é tão necessário. Pessoalmente demorei muito tempo para aceitar fazer terapia de casal. Minha ex companheira queria que fosse uma psicóloga mulher, negra, de esquerda e tudo mais. Inconscientemente achava que seria mais uma para me jogar pedras. No fim as coisas estavam tão difíceis que acabei aceitando os seus termos. Como não achamos uma que preenchesse todos os requisitos, fomos em uma psicóloga que era "só" mulher rsrsrsrs Foi a melhor decisão que podia ter tomado. A profissional só foi guiando a sessão com perguntas, de forma imparcial, questionando como cada um se sentia com as colocações do outro etc. Mas a simples oportunidade de verbalização deixou uma coisa clara, que até então para mim era inimaginável: eu não era um monstro e aquele relacionamento definitivamente não estava me fazendo bem. Caiu a ficha. Minha ex companheira desacreditou a profissional dizendo que ela "ficou do meu lado". Não tem lado, são sentimentos humanos que precisam ser igualmente respeitados e acolhidos para que possa haver amor...